Atenção: esse texto foi originalmente publicado em 19 de julho de 2021 no blog do Instituto Comida do Amanhã.
Você pode acessar esse artigo em inglês clicando aqui.

A importância do bem-comer e o comportamento alimentar digital

Afinal, o que é se alimentar “corretamente” e o que isso tem a ver com a maneira como enxergamos a tecnologia?

Diogo Tomaszewski
7 min readOct 14, 2022

Segundo a última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada entre os anos de 2017 e 2018, nunca comemos tão mal. O estudo diz que, nos últimos anos, nossa qualidade nutricional piorou, uma vez que, apesar do consumo de frutas, hortaliças e minimamente processados se manter, os alimentos ultraprocessados ganharam um espaço considerável na mesa. Ao mesmo tempo, nunca estivemos tão conectados. De acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em dezembro de 2020 atingimos a inacreditável marca de 234 milhões de acessos móveis, um valor impressionante para uma população aproximada de 210 milhões de habitantes no país.

Estes dois fatos, aparentemente isolados, podem ser interligados para mostrar como é possível o protagonismo das pessoas em relação às próprias escolhas, apesar de haver uma enorme influência de todos os atores que envolvem o sistema alimentar.

O que é o bem-comer?

Está previsto na Constituição Brasileira, em seu artigo 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”.

A história do Brasil com a questão alimentar é antiga: no anos 1940, Josué de Castro já disse em seu livro “Geografia da Fome” que a fome brasileira pode ser considerada endêmica e pandêmica, além de afirmar que “interesses e preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado”.

A discussão pode (e deve) ir muito além, daria para fazer um texto apenas sobre essa temática. Entretanto, meu foco aqui é aquele que poderia ser um dos maiores motivos de orgulho brasileiro: o Guia Alimentar par a a População Brasileira. Criado pelo Ministério da Saúde no ano de 2006 (e completamente revisado em 2014), ele é visto como uma referência mundial pois leva em consideração que uma alimentação não se restringe apenas a uma questão de saúde, mas também de sustentabilidade, além de levar em consideração as relações culturais por ela desenvolvidas. Isso pode ser percebido logo em seu primeiro capítulo, que fala sobre seus princípios:

  • Alimentação é mais que ingestão de nutrientes: alimentação diz respeito à ingestão de nutrientes, mas também aos alimentos que contém e fornecem os nutrientes, como alimentos são combinados entre si e preparados, características do modo de comer e às dimensões culturais e sociais das práticas alimentares. Todos esses aspectos influenciam a saúde e o bem-estar;
  • Recomendações de alimentação devem estar em sintonia com seu tempo: recomendações feitas por Guias Alimentares devem levar em conta o cenário da evolução da alimentação e das condições de saúde da população;
  • Alimentação adequada e saudável deriva de sistema alimentar socialmente e ambientalmente: recomendações sobre alimentação devem levar em conta o impacto das formas de produção e distribuição dos alimentos sobre a justiça social e a integridade do ambiente;
  • Diferentes saberes geram o conhecimento para a formulação de Guias Alimentares: em face das várias dimensões da alimentação e da complexa relação entre essas dimensões e a saúde e o bem-estar das pessoas, o conhecimento necessário para elaborar recomendações sobre alimentação é gerado por diferentes saberes;
  • Guias Alimentares ampliam a autonomia nas escolhas alimentares: o acesso à informações confiáveis sobre características e determinantes da alimentação adequada e saudável contribui para que as pessoas, famílias e comunidades ampliem a autonomia para fazer escolhas alimentares e para que exijam o cumprimento do direito humano à alimentação adequada e saudável;

É claro que a discussão pode (e deve!) ser muito mais profunda que isso. Ainda assim, não devemos nos esquecer que, nas últimas duas décadas, nosso país teve papel fundamental na promoção de uma alimentação não apenas saudável, mas também sustentável, inclusiva, empoderadora, biodiversa e culturalmente integrada. E que essa busca passa pela produção, comercialização, indústria, governo, terceiro setor, mas também pelo nosso poder de escolha sobre aquilo que queremos e podemos colocar no nosso prato. Entretanto, esse poder de escolha individual sofre inúmeras influências externas, tais como a criação e implementação de políticas públicas que garantam o acesso a alimentação nos mais diferentes contextos — por exemplo, alimentação escolar, pequenos produtores, agricultura urbana e ambiente hospitalar — e o próprio ambiente digital, cuja evolução se dá a um ritmo acelerado, com suas experiências de anúncios patrocinados, apps, comunidades e interações cada vez mais diretas.

A influência dos meios digitais

Se compararmos a maneira como a tecnologia focada em comunicação evoluiu nos seus primeiros vinte anos — ou seja, da década de 1980 até os anos 2000 — é possível visualizar uma série de mudanças. Nos últimos vinte anos — do início do milênio até os dias atuais — essas mudanças se intensificaram de maneira acelerada: se antes o telefone era uma das poucas tecnologias voltadas à facilitação da comunicação, atualmente o que não nos falta são opções: WhatsApp, Skype, Instagram, TikTok. Twitter e Kwai são apenas alguns exemplos de como fizemos, de maneira proposital, as distâncias diminuírem consideravelmente.

E essa mudança tem impacto direto na maneira como a alimentação é encarada. Se antes nos limitávamos a pedir uma pizza, hoje as possibilidades são enormes. São inúmeros os apps voltados exclusivamente para delivery. É a rede social voltada para as fotos (onde inclusive foi iniciado o movimento #FoodPorn); são os restaurantes que possuem a decoração propositadamente feita para chamar a atenção; são as ações realizadas em realities shows para promover a marca de fast food; São os documentários em serviços de streaming; é o podcast semanal que aborda o tema com visão crítica.

Todo esse panorama, ainda muito recente, pode ser definido como paisagem alimentar digital (ou digital foodscape, no termo original em inglês). Segundo os autores, são espaços geográficos, mas que fazem com que sintamos confusão na separação das nossas vidas online e offline. Também são espaços materiais, uma vez que estamos em contato constante com servidores, telas e plataformas que fornecem um conteúdo digital relacionado à alimentação. Além disso, podem ser considerados espaços semióticos, uma vez que ficamos constantemente expostos a imagens, textos, significados, políticas e, em última instância, símbolos que são colocados no espaço digital.

É uma infinidade de possibilidades. E tudo fica mais interessante quando percebe-se que não somos mais apenas consumidores: podemos nos tornar também produtores. Esse fenômeno foi pensado ainda em 1980, no livro “A Terceira Onda”, de Alvin Toffler, ao denominar as pessoas como prosumers, uma junção de productor + consumer. Consumimos conteúdos sobre comida, mas também podemos produzir esse tipo de conteúdo. Isso acaba trazendo uma série de implicações, tais como a propagação de notícias falsas, a produção de conteúdos rasos e a polarização de visões de mundo, mas também possibilita a busca por fontes de informação sérias, a realização de colaborações ao redor de um mesmo tema e a definição de um posicionamento firme no ambiente digital.

Esse fenômeno explica, por exemplo, a ascensão dos influenciadores digitais e, mais recentemente, os “embaixadores” das marcas. Embaixadores pois, mais do que simplesmente influenciar o processo de compra de um produto, o embaixador carrega consigo a missão, a visão e os valores das empresas que os patrocinam dentro e fora desse ambiente digital.

Gilberto Nogueira, conhecido participante da última edição do reality show Big Brother Brasil, ficou conhecido como “Gil do Vigor” durante o período que esteve confinado. Ficando em quarto lugar na competição, logo que saiu do programa fechou contrato com a marca de iogurtes, tornando-se “embaixador” da mesma, além de mudar seu nome nas redes sociais para “Gil da Vigor”.

O que pode ser feito?

A paisagem alimentar digital brasileira, nos últimos anos, está sofrendo profundas mudanças. Dentro do contexto do poder público, mudanças como a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e as recentes tentativas de alteração do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e do próprio Guia Alimentar para a População Brasileira são exemplos muito evidentes, uma vez que há uma grande repercussão no ambiente digital. Na iniciativa privada, por outro lado, há cada vez mais apelo ao alimento ultraprocessado, uma vez que são essas as empresas que detêm o capital financeiro para que sua mensagem chegue massivamente à população, seja através de anúncios pagos ou conteúdo patrocinado com influenciadores digitais e embaixadores.

Diante desse cenário, podemos muitas vezes nos sentir desnorteados sobre como nos comportar em relação a tudo que está acontecendo. É nesse momento que devemos relembrar o nosso papel central enquanto habitantes do mundo digital: temos a capacidade de escolha. Ainda que influenciados por todos os lados e a cada momento, é possível escolher entre ficar inertes perante tantos acontecimentos ou ter um posicionamento enérgico perante os fatos; ficar tristes ou chateados com as mudanças ocorridas ou abraçar a impermanência das coisas; ficar paralisados ou partir para a ação.

Só depende de você. Vamos juntos?

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Diogo Tomaszewski

Bridging the gap between consumer and brands designing strong communities for the New Economy.